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IMAGÉTICA PARA "NINGUÉM"

 

Venho traçando um longo percurso de cumplicidades criativas com o Zeferino Mota. Os seus textos são um ponto de partida, mas contêm sempre um mundo que admite outros mundos e contributos de generosa liberdade.

“Ninguém” evoca escalas microscópicas, demora-se na escala humana, expande-se do palco para o deserto e viaja pelo universo. Tecelagem entre o cálcio que existe nos ossos e que “está no universo desde o início”, e a tragédia daqueles, que tendo sido calados por regimes totalitários, receiam não ter quem conte a sua história.

Encontrei neste texto dois domínios que se destacaram na minha imaginação: a dimensão humana, que tem perfeita figuração no rosto, e a dimensão subliminar das forças naturais que estão na origem de todas as formas, entre o microscópico e o macroscópico, que pela sua natureza se tornam mais abstratas e resistentes à figuração. Nada se esgota numa só conjetura visual, e por isso, entre o rosto e a abstração, sobrou espaço para representar galáxias e o deserto, em particular o deserto citado no texto, Atacama. Palco do comovente drama humano das mulheres, que ao longo de anos, vasculham os seus solos em busca do que restará dos seus entes queridos, desaparecidos às mãos de um regime dantesco. Mas também local privilegiado para astrónomos fazerem uso dos seus telescópios, observando os céus, na tentativa de compreender melhor a nossa existência na escala do cosmos.

Da minha pesquisa, que é também na prática uma busca por modelos visuais que sirvam a criação de imagens, fui profundamente tocado por dois objetos de atenção a quem devo, em grande medida a imagética do conjunto que criei:

-O filme documentário “A Nostalgia da Luz” de Patricio Guzmán, que conjuga, com mestria, temáticas que de outro modo estariam estanquemente separadas, a astronomia, a arqueologia, a história, o Deserto de Atacama, a memória dos que foram calados.

-O local na internet “memoriaviva” (http://www.memoriaviva.com/) que funciona como um arquivo digital das violações dos direitos humanos pela ditadura militar chilena, contendo fotografias e pequenas biografias das vítimas do regime de Pinochet. Li dezenas destas biografias e vi fotos de homens, de mulheres e de gente muito jovem. Muitas vezes comovi-me.

Os modelos visuais estavam encontrados, pontos de partida para chegar a um novo lugar, o lugar de “Ninguém”.

São, o mais das vezes, indecifráveis as forças que fermentam a atividade do criador. Não são do domínio do mistério, mas do enigmático, de uma complexidade que escapa à compreensão sistemática. As imagens dos desaparecidos foram um referencial para o (rosto) humano. Mas nunca tive a intenção de fazer retratos. Saído dos domínios do indecifrável, decidi subtrair a parte superior dos rostos representados. A parte que contém os olhos, substituída pelo que, eventualmente, estará a ser observado, numa justaposição que lembra uma colagem. Outras vezes, a parte superior foi substituída por uma abstração sob forma de um espectro vertical, numa escala de valores lumínicos, como numa decomposição da luz que ilumina o rosto do modelo, evidenciando a matéria da pintura que antecede a figuração.

O que começou por ser um trabalho de criação num âmbito circunscrito, a pensar na ilustração de um jornal ou numa imagem para um eventual cartaz, acabou numa série pictórica com mais de uma quinzena de obras já terminadas, que ainda hoje evolui e que intitulei de “Transiente”.

A maioria destas obras foi realizada durante o confinamento e enquanto acompanhava o meu pai no tratamento de um cancro que acabou por o levar, para que mais uma vez a matéria, que lhe deu a forma tolerante e gentil que conheci, regressasse a um estádio mais elementar, como o cálcio dos ossos que já existia antes de ele se formar.

 

LT 2021

1 Transient series I (20x38 2021).jpg
12 Transient Series XII (20x30 2021).jpg
14 Transient Series XIV (20x30 2021).jpg

ARTLAB24

ENXERTIA

 

O conjunto pictórico apresentado na ARTLAB24 integra, maioritariamente, obras de duas diferentes séries desenvolvidas desde 2018 até ao presente e que continuam em evolução, “Primate” e “Grafting”.

Em “Primate” experimenta-se a composição em formato díptico de dois motivos justapostos. Partes do rosto humano e partes do crânio de um primata. Espera-se que a plasticidade de ambos os motivos, quando justapostos, encontrem o seu próprio caminho de significação, numa busca que se pretende manter aberta à interpretação. Para o pintor, a continuidade das espécies, em particular entre humano e animal, ensinada por Darwin, poderá ter alguma relevância nas escolhas do conjunto, mas nem ao próprio esta explicação oferece suficiente nitidez temática para ser esclarecedora.

A série mais recente, “Grafting”, e que, numa tradução livre para o português, dá título à presente exposição, associa um motivo vegetal, a árvore, à omnipresença da figura.

A sombra projectada de uma árvore pode fragmentar a imagem da figura. Podemos reconstruir mentalmente esse vazio e é isso que tendemos a fazer naturalmente, completando o que está ausente, para que a imagem faça mais sentido. Mas de facto, e do ponto de vista do pintor, ali existe unicamente tinta escura, que segmenta o rosto humano. Nesse limiar informe a ilusão desaba e só a matéria da pintura manifesta as suas próprias ruminações.

Nas pinturas mais recentes desta série, a interação do elemento vegetal com a figura torna-se mais física. O contacto sob pressão da figura com o ramo de árvore gera uma nova modelação do rosto, que cede a essa pressão e, numa lógica “desfigurativa”, se transforma, acomodando-se ao elemento vegetal. A pintura quer apreender essa deformidade adaptativa e reter a sua tensa expressividade.

Nestas representações os olhos aparecem fechados, como num convite à introspecção.

Perpassa, na globalidade destas obras uma constante: a representação humana, em conjugação com um segundo motivo que serve de catalisador para a exploração visual e a especulação plástica sobre o humano.

 

LT Junho de 2020 ARTLAB24

9_Grafting series IX 18,5x16 2020.jpg
8_Grafting series VIII 18,5x16 2020.jpg

FRAME

 

 

Frame apresenta um conjunto pictórico marcado por uma única condicionante programática, imposta a si próprio pelo pintor: a utilização livre de imagens dos filmes do realizador de Andrei Tarkovsky como modelo visual na construção destas pinturas.

 

Mesmo que de uma maneira enviesada, e através dos meios obsoletos da pintura, este projeto permitiu enaltecer uma paixão antiga pela obra deste realizador.

 

Com este programa, em que de modo despudorado se utilizaram vários frames dos seus filmes, obteve-se, de uma só vez, um modelo de atmosfera e cor, assim como um modelo humano para a representação da figura. A partir destas imagens construiu-se um novo imaginário, agora pictórico, pessoal, íntimo, uma forma sublimada de conseguir olhar o abismo.

 

Tarkovsky representa, em cinema, o que se pretende aqui em pintura: criação em “modo profundo” e uma vontade de trazer a criação artística para um campo oposto ao do mundano.

 

Os seus filmes são um modelo, por excelência, de liberdade narrativa, simbólica e de plasticidade visual. No filme “Stalker” três personagens, entre eles o próprio Stalker, vistos de costas em cima de um pequeno comboio, entram na “Zona” que Slavoj Zizek descreve como um lugar onde não existe nada de específico, sendo somente um sítio onde um certo “limite” foi estabelecido. Para lá deste imposto “limite” temos a perceção de existir outro lugar, um lugar onde podemos projetar as nossas convicções, medos, realidades do nosso espaço interior… A “Zona” é, em última instância, o branco imaculado da tela cinematográfica ou, acrescente-se, da tela pictórica.

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LT 2015

2015, FRAME series, 100x80 cm, oil on canvas
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